sexta-feira, 25 de junho de 2010

As mãos pressentem





As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada


Al Berto

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Poema do Silêncio



Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


José Régio

Nasci-te



No meu ventre de mulher cresceu teu feto
e foi a minha boca que te deu palavras
e silêncios para tu gritares
Dos meus braços multipliquei teus braços
e dei distâncias para tu voares
Dei-te tempos-de-nada
medidos de coragem
E foste. E és.


Manuela Amaral

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sê tu a palavra


1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?


Eugénio de Andrade

terça-feira, 22 de junho de 2010

Chove!



Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


José Gomes Ferreira

Este homem que pensou





Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



António Ramos Rosa

espera


espera,
deixa a noite ficar mais um pouco,
deixa o escuro cintilar,
mais um dia e outro,
nele somos gigantes,
somos vieiras de negro
e eternos amantes....



Nimbus

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Fever Ray 'Keep The Streets Empty For Me'

se para ser homem



se para ser homem
se dissolve o plástico no plasma
se funde o ferro na prata

então

quero ser pássaro
ou mesmo uma árvore,
um verme fedendo a terra
uma rocha
cinzenta de tristeza....


Nimbus

as lágrimas



..as lágrimas
lavam-nos a alma,
e entregam-nos livres
nas mãos do futuro....


Nimbus

Arte de Amar





Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.



Manuel Bandeira

domingo, 20 de junho de 2010

Gota de Água



Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.


António Gedeão

Staind - Everything Changes By Nimbus

na minha cascata



...na minha cascata,
nem homem, nem criança,
nem pensamento ou lembrança,
apenas água,
livre no coito da terra.....


Nimbus

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto



Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.



Maria do Rosário Pedreira
de A Casa e o Cheiro dos Livros

sábado, 19 de junho de 2010

Demissão



Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

Destruição



Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 18 de junho de 2010

[AR]RISCO



Arrisco, sem risco,
sem tomar fôlego ou balanço,
sem olhar a louros ou jarras douradas
dos jardins renascentistas de XVII

arrisco, mesmo sabendo que a carne
apodrece dentro da maturidade.
Arrisco em saber que talvez hoje
seja tarde para olhar o crucifixo
como quem o olha de fora [para dentro].

Arrisco em nada dizer, mesmo que as palavras
se soltem como feras [amestradas]
de uma savana [enjaulada no circo].
Será esta a nossa flâmula dourada
                                      [secreta
duma mera pequenez de existir?



Miguel Pires Cabral

http://barbituricodaalma.blogspot.com/

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Não é ainda a pele, apenas




Não é ainda a pele, apenas
um rumor de lã nas camisolas, um recado
a lembrar tardes no feno, linho lavado, o sol
mordendo um rio pela manhã ―
assim a distância entre a minha mão e o pessegueiro.

Na estrada
as flores demoram-se até às laranjas,
mas o aroma do pomar faz sede e os olhos cegam
na promessa de gomos novos e doces, os mais doces. Talvez

por isso se continue a viagem sem olhar para trás.



Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nunca soube o teu nome


Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra pessoa -
um sol que de repente acrescentava cal aos muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.

Não te menti; levantei-me e fui levar-te à porta certa
como um veleiro arrasta os sonhos para o mar; mas,
antes de te deixar, disse-te ainda que nessa tarde
bem teria gostado de chamar-me outra coisa - ou
de ser gato, para poder ter mais do que uma vida.


Maria do Rosário Pedreira

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Recado




ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto

domingo, 13 de junho de 2010

insónia


na insónia,
as fronteiras são
de um atilho de linho sarças,
ainda sinto o fervilhar do sépia,
a goma lilás
derretida no cálice.

o entoar sereno da manhã


Nimbus

de todos os monstros



.....de todos os monstros
que bailoiçam no trigo,
que dançam no crivo do joio,
teu corpo,
é o demónio da seiva,
que me gela nas veias
e se diverte,
no abismo de um olhar....

Nimbus

Poema


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny

sábado, 12 de junho de 2010

Ausência



Em que estás a pensar?
me pergunta a chuva,
como se fossem teus lábios a soletrar,
e eu longe,
como que se no branco navega-se,
e nem tua silhueta distingui-se,
na vastidão do rochedo
onde de repente acordei....


Nimbus

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio




Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz pricipitado.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Era o último amor




Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem advinha
o sabor pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Quem rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor, o mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.


Luís Filipe Castro Mendes

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A meu favor


A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer


A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


Alexandre O'Neill

domingo, 30 de maio de 2010

Sei lá gritado!


Sei lá gritado!
Esqueci de ti
sei lá porquê!
Ocupei meu corpo
e à mente
arremessei-lhe, teatro
ontem fui papel feliz
num sorriso alongado até hoje
lembrei ao sentir saudades
sabes, senti saudades!
Sei lá se me ouves!
Nesta volta vi que a tudo escapei
lembrei, ouviste?
Lembrei e cá voltei!
Aqui tens a pegada da minha ausência
e uma mão cheia de nada
num um olhar, distante
estou assim, quase perdida
no sorriso de um palhaço
sei lá se volto!
sei lá se vou!
Já não sei o que sou!
Ouço o actor cá dentro
dizem que é mentecapto
e dessa louquice eu gosto, não!
Adoro e amo ser mentecapto!
Adoro ser louco
Adoro gritar o mesmo nome
Sei lá! Sei lá! Sei lá!
Gritei, e pronto!

Rosa Magalhães

Sobre o regaço

Sobre o regaço tinha
o livro bem aberto;
tocavam em meu rosto
seus caracóis negros.
Não víamos as letras
nem um nem outro, creio;
mas guardávamos ambos
fundo silêncio.
Por quanto tempo? Nem então
pude sabê-lo.
Sei só que não se ouvia mais que o alento,
que apressado escapava
dos lábios secos.
Só sei que nos voltámos
os dois ao mesmo tempo,
os olhos encontraram-se
e ressoou um beijo.

Gustavo Adolfo Bécquer

Sentidos....

ouve,
meu fôlego a chamar.
sente,
meu silêncio beijar-te.
cheira,
...o limão e a hortelã
na beira do abismo.
saboreia,
o vinagre do vinho
num papel de arroz.
depois,
em teu traje
enverga a carne,
deixa-me olhar-te...

e os sentidos,
terão a razão....


Nimbus

sábado, 29 de maio de 2010

Não vás....




Não vás,
que o lume,
ainda agora acendeu
nos devorou o escuro
e nos pintou deste tom de oiro,
não vás,
que aqui seremos eternos
como os corvos e azinheiras
que a nosso lado pernoitam,
que aqui,
mouros foram reis
e as estrelas eram as mesmas.
Não vás,
que lentamente
a fúria das águas inumdará
teu útero
e o frio será passado,
aqui,
entre o junco fresco
e o loendro de cor,
no gume da lareira
num orgasmo prolongado.....


Nimbus

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Meus Filhos



Fechei a porta
Finalmente o vento parou de bater
O monstro alado parou de lutar
Fechei a porta no último minuto
Nem precisei usar força
Talvez nem mesmo a tenha fechado
Ela se fechou sozinha
Como quando o vento muda de direção.

Saí para ver o céu
Finalmente a chuva parou de cair
As gotas grossas pararam de me machucar
Saí para ver o céu no último dia
Nem precisei esperar
Talvez nem mesmo tenha saído
O céu entrou em mim
Como quando fechamos os olhos e ainda vemos a luz.



Lígia Diniz

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Beijo




Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
ira de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.


Jorge de Sena

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O amor que sinto



O amor que sinto
é um labirinto.

Nele me perdi
com o coração
cheio de ter fome
do mundo e de ti
(sabes o teu nome),
sombra necessária
de um Sol que não vejo,
onde cabe o pária,
a Revolução
e a Reforma Agrária
sonho do Alentejo.
Só assim me pinto
neste Amor que sinto.

Amor que me fere,
chame-se mulher,
onda de veludo,
pátria mal-amada,
chame-se "amar nada"
chame-se "amar tudo".

E porque não minto
sou um labirinto.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 25 de maio de 2010

Deixei de ouvir-te



Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.

Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.

Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo

ou perdoar-lhe.


Maria do Rosário Pedreira

sábado, 22 de maio de 2010

Cântico Negro



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio

Sexta-feira à noite



Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.

Marina Colasanti

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Confesso



Sabes,
eu confesso,
que te quero tocar, cheirar,
sentir teu útero no vôo
estonteante da borboleta,
na berma do crime,
numa estalagem
com sabor de amoras
e grinaldas de coral,
eu confesso,
que outrora as palavras
saciavam minha sede,
e adormeciam a besta,
agora,
minhas veias são de fogo
e meu fôlego
é pecado,
anel, num quarto vazio.....


Nimbus

domingo, 16 de maio de 2010

Penélope



Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


David Mourão-Ferreira

Duna




..de que manhã,
teus lábios gelados,
de que duna,
tua longínqua aparição,
sou o sabre da vela,
a beira da soalha,
que se esgueira
pelo cume da estanheira....


Nimbus

sexta-feira, 14 de maio de 2010

as ruas....




as ruas
são estreitas
para mim,
sinto-me
roçar
as esquinas,
na cal
ciumenta e triste,
testemunha
de minha evasão.....



Nimbus

apenas lembrarás...



apenas lembrarás,
e eu serei sempre
o olhar do entardecer,
o crepúsculo por um funil,
vai,
que eu procurarei,
o segredo da água
o perfume das árvores,
um embrião, uma ninfa,
na lentidão da centopeia
na praga das melgas,
meus dias,
são aberrações no cimo do monte,
a ver passar a aragem
na copa dos arbutos,
há,
e como assim vivo
e respiro...


a noite cai....



Nimbus

Dorme tranquila...





Dorme tranquila
meu amor,
que eu afasto
os lobos e as feras,
os insectos
com vicio de luz,
as serpentes
sequiosas de leite,
os vermes
de garras ardentes,
dorme tranquila
meu amor,
que meus olhos,
vigiarão a noite
e toda a constelação
de teu ser....


Nimbus

Pegasus




...meu Pegasus,
juntos sairemos pela calada da noite,
e não haverá,
nem vale ou montanha,
que um dia não nos visite.....


Nimbus

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma Paixão



Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem
ver-me
antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão
a lava do desejo
subindo à boca
sulfurosa dos espelhos
vem
antes que desperte em
mim o grito de alguma terna Jeanne Hébuterne a
paixão derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono
das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração
que não sabe como tocar-te



Al Berto

Procura a maravilha




Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.




Eugénio de Andrade

O amor...




o amor
é um menir,
imponente e rubro,
do qual não consigo escapar....
Nimbus

Silêncio & palavras....



...hoje....vingo o silêncio com as palavras...para que nunca te esqueças...do que sinto....




Nimbus

Grito....



...de que grito foi feito o meu beijo.... de que onda... minha saliva?...




Nimbus

Homem




do mito,
sai o deus,
do deus o demónio,
do demónio...o homem.....
Nimbus

Orgasmo...




...girino de barro,
leve clemência
de canibalismo,
devorarei o orvalho de teu ventre,
sem tocar tua carne,
nem escutar o gemido,
de um orgasmo teu.....



Nimbus