domingo, 30 de maio de 2010

Sei lá gritado!


Sei lá gritado!
Esqueci de ti
sei lá porquê!
Ocupei meu corpo
e à mente
arremessei-lhe, teatro
ontem fui papel feliz
num sorriso alongado até hoje
lembrei ao sentir saudades
sabes, senti saudades!
Sei lá se me ouves!
Nesta volta vi que a tudo escapei
lembrei, ouviste?
Lembrei e cá voltei!
Aqui tens a pegada da minha ausência
e uma mão cheia de nada
num um olhar, distante
estou assim, quase perdida
no sorriso de um palhaço
sei lá se volto!
sei lá se vou!
Já não sei o que sou!
Ouço o actor cá dentro
dizem que é mentecapto
e dessa louquice eu gosto, não!
Adoro e amo ser mentecapto!
Adoro ser louco
Adoro gritar o mesmo nome
Sei lá! Sei lá! Sei lá!
Gritei, e pronto!

Rosa Magalhães

Sobre o regaço

Sobre o regaço tinha
o livro bem aberto;
tocavam em meu rosto
seus caracóis negros.
Não víamos as letras
nem um nem outro, creio;
mas guardávamos ambos
fundo silêncio.
Por quanto tempo? Nem então
pude sabê-lo.
Sei só que não se ouvia mais que o alento,
que apressado escapava
dos lábios secos.
Só sei que nos voltámos
os dois ao mesmo tempo,
os olhos encontraram-se
e ressoou um beijo.

Gustavo Adolfo Bécquer

Sentidos....

ouve,
meu fôlego a chamar.
sente,
meu silêncio beijar-te.
cheira,
...o limão e a hortelã
na beira do abismo.
saboreia,
o vinagre do vinho
num papel de arroz.
depois,
em teu traje
enverga a carne,
deixa-me olhar-te...

e os sentidos,
terão a razão....


Nimbus

sábado, 29 de maio de 2010

Não vás....




Não vás,
que o lume,
ainda agora acendeu
nos devorou o escuro
e nos pintou deste tom de oiro,
não vás,
que aqui seremos eternos
como os corvos e azinheiras
que a nosso lado pernoitam,
que aqui,
mouros foram reis
e as estrelas eram as mesmas.
Não vás,
que lentamente
a fúria das águas inumdará
teu útero
e o frio será passado,
aqui,
entre o junco fresco
e o loendro de cor,
no gume da lareira
num orgasmo prolongado.....


Nimbus

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Meus Filhos



Fechei a porta
Finalmente o vento parou de bater
O monstro alado parou de lutar
Fechei a porta no último minuto
Nem precisei usar força
Talvez nem mesmo a tenha fechado
Ela se fechou sozinha
Como quando o vento muda de direção.

Saí para ver o céu
Finalmente a chuva parou de cair
As gotas grossas pararam de me machucar
Saí para ver o céu no último dia
Nem precisei esperar
Talvez nem mesmo tenha saído
O céu entrou em mim
Como quando fechamos os olhos e ainda vemos a luz.



Lígia Diniz

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Beijo




Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
ira de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.


Jorge de Sena

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O amor que sinto



O amor que sinto
é um labirinto.

Nele me perdi
com o coração
cheio de ter fome
do mundo e de ti
(sabes o teu nome),
sombra necessária
de um Sol que não vejo,
onde cabe o pária,
a Revolução
e a Reforma Agrária
sonho do Alentejo.
Só assim me pinto
neste Amor que sinto.

Amor que me fere,
chame-se mulher,
onda de veludo,
pátria mal-amada,
chame-se "amar nada"
chame-se "amar tudo".

E porque não minto
sou um labirinto.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 25 de maio de 2010

Deixei de ouvir-te



Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.

Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.

Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo

ou perdoar-lhe.


Maria do Rosário Pedreira

sábado, 22 de maio de 2010

Cântico Negro



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio

Sexta-feira à noite



Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.

Marina Colasanti

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Confesso



Sabes,
eu confesso,
que te quero tocar, cheirar,
sentir teu útero no vôo
estonteante da borboleta,
na berma do crime,
numa estalagem
com sabor de amoras
e grinaldas de coral,
eu confesso,
que outrora as palavras
saciavam minha sede,
e adormeciam a besta,
agora,
minhas veias são de fogo
e meu fôlego
é pecado,
anel, num quarto vazio.....


Nimbus

domingo, 16 de maio de 2010

Penélope



Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


David Mourão-Ferreira

Duna




..de que manhã,
teus lábios gelados,
de que duna,
tua longínqua aparição,
sou o sabre da vela,
a beira da soalha,
que se esgueira
pelo cume da estanheira....


Nimbus

sexta-feira, 14 de maio de 2010

as ruas....




as ruas
são estreitas
para mim,
sinto-me
roçar
as esquinas,
na cal
ciumenta e triste,
testemunha
de minha evasão.....



Nimbus

apenas lembrarás...



apenas lembrarás,
e eu serei sempre
o olhar do entardecer,
o crepúsculo por um funil,
vai,
que eu procurarei,
o segredo da água
o perfume das árvores,
um embrião, uma ninfa,
na lentidão da centopeia
na praga das melgas,
meus dias,
são aberrações no cimo do monte,
a ver passar a aragem
na copa dos arbutos,
há,
e como assim vivo
e respiro...


a noite cai....



Nimbus

Dorme tranquila...





Dorme tranquila
meu amor,
que eu afasto
os lobos e as feras,
os insectos
com vicio de luz,
as serpentes
sequiosas de leite,
os vermes
de garras ardentes,
dorme tranquila
meu amor,
que meus olhos,
vigiarão a noite
e toda a constelação
de teu ser....


Nimbus

Pegasus




...meu Pegasus,
juntos sairemos pela calada da noite,
e não haverá,
nem vale ou montanha,
que um dia não nos visite.....


Nimbus

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma Paixão



Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem
ver-me
antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão
a lava do desejo
subindo à boca
sulfurosa dos espelhos
vem
antes que desperte em
mim o grito de alguma terna Jeanne Hébuterne a
paixão derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono
das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração
que não sabe como tocar-te



Al Berto

Procura a maravilha




Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.




Eugénio de Andrade

O amor...




o amor
é um menir,
imponente e rubro,
do qual não consigo escapar....
Nimbus

Silêncio & palavras....



...hoje....vingo o silêncio com as palavras...para que nunca te esqueças...do que sinto....




Nimbus

Grito....



...de que grito foi feito o meu beijo.... de que onda... minha saliva?...




Nimbus

Homem




do mito,
sai o deus,
do deus o demónio,
do demónio...o homem.....
Nimbus

Orgasmo...




...girino de barro,
leve clemência
de canibalismo,
devorarei o orvalho de teu ventre,
sem tocar tua carne,
nem escutar o gemido,
de um orgasmo teu.....



Nimbus

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Insano




insano,
me penso eu,
demente,
dizes tu,
louco,
me chamam os outros....
Selvagem,
diz o vento,
livre,
me escreve a lua,
rebelde,
me segreda o sol,
anda....
me abre os braços,
e me chama,
o mar.......


Nimbus

terça-feira, 11 de maio de 2010

Vendo a carne...


...vendo a carne,
os ossos....
para me esgueirar e em silêncio...
sem te acordar...
dormir a teu lado.....
Nimbus

Hoje...


....hoje,
quero libertar-te,
desta prisão...
...eu a pensar em ti....
Nimbus

Sábios, foram os deuses....




Sábios,foram os deuses,
que te vestiram de pele,
e te deram o cheiro do ouro....



Nimbus

Como gostava...




há...como gostava que tua água
me embriaga-se assim...
como as gotas desta chuva de canela e maio,
chuva de goma verde,
de rasto & pasto,
deitada na lama....



Nimbus

Faz de conta....



Faz de conta,
que estás aqui,
e que comigo prenúncias
por ordem
o silêncio, o murmúrio e o desejo,
faz de conta,
que caminhas a meu lado
pela estrema da cama
e incendiamos o pólen dos anjos,
faz de conta,
que a distância é tão curta,
que nem a notamos esfriar a vidraça,
faz de conta,
que em plena praia
inventamos a areia e a maré
e nela sucumbimos a partir,
faz de conta meu amor,
que nem eu, nem tu,
secamos as eiras de abraços,
nem os trilhos e sebes da cassiopeia,
faz de conta,
meu amor,
que fostes tu,
que me escrevestes,
e que
eu amei......


Nimbus

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Vivo....



...de que falo eu,
quando falo sozinho,
do que me riu,
se a felicidade è nómada
e partiu em busca dos prados,
o que penso eu,
quando nos lábios
já amadureceram e secaram
as palavras,
o que canto eu,
quando as rimas e as prosas,
seguiram a música,
mas eu fiquei,
e ficarei,
até que a pauta de latim,
me devore,
e me proclame....vivo.....


Nimbus

Perder e ganhar....



....hoje, perdi olhos
mas ganhei visão,
perdi boca,
mas ganhei palavras,
perdi membros,
mas ganhei asas,
perdi mesmo até o passado,
mas ganhei o futuro......


Nimbus

Porque te escondes?



Porque te escondes?
E me deixas abandonado
ao silêncio da noite…
e ao leve perfume do que não foi…
Vem! E traz contigo o cheiro, as palavras e o sabor……
Estou aqui,
e não quero desaparecer,
nem fujo de ti,
mas tu de mim,
ou de ti,
quando és um oceano
de amor e palavras,
e eu um simples riacho
onde apenas a lebre
vem matar a sede….


Nimbus

Passamos pelas coisas sem as ver...




Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.



Eugénio de Andrade

Como queres....



Como queres,
que um dia deixe a planície
e percorra o caminho até ao mar
com um pedaço de pão e uma calça rasgada…
se mesmo assim,
á distância
me largas e te ausentas
e não deixas,
nem o odor em teu rasto,
como queres...


Nimbus

Mendigo....




...eu disse-te, que sou um simples mendigo,
que a demência procria em mim,
o eco das palavras não sobe ao céu,
primeiro,
trespássa-nos a carne,
e entrega-nos débil,
a semente da manhã....



Nimbus

Quanto terror latente...



Quanto terror latente
nesse mar gelado
que desde sempre
levamos na alma.





António Castañeda

Sai...




...não disse, que ia comprar tabaco,
simplesmente sai...
fixei o olhar na calçada,
e bebi as esquinas
à mesa da noite....




Nimbus

Pus o meu sonho num navio



Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

Longe...



...sinto-me longe do mundo....amnésia de sabão & uma pitada de ópio....





Nimbus

...resposta....



Estou aqui! Nos verdes campos deitado,
sobre o segredo da erva,
a vacilar entre a lenda e a razão,
a paixão e a loucura...
Não sei, se realmente este cheiro,...
de papoilas e alecrim,
é vivo ou servo de um pàssaro
que me esvoaça na alma....
Estou longe, mas nem tão longe assim,
que não possa sentir o fervilhar de teu ventre,
estou perto, mas nem tão perto assim,
que de tua péle sacie a demência da água....
sou assim, mas sou,
ou apenas me invento,
e no silêncio, morri assim.....

Nimbus

Não tenho ambições nem desejos.



Não tenho ambições nem desejos.
ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sózinho.
...

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
...
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem sabe o que é amar...
...

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
...

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Fernando Pessoa

domingo, 9 de maio de 2010

Foi para ti que criei as rosas



Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.


Eugénio de Andrade

sábado, 8 de maio de 2010

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.


António Ramos Rosa

Vai-te, Poesia!



Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!


José Gomes Ferreira

Entre os teus lábios



Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Eugénio de Andrade

De que fim.....



...de que fim,
de vento....
de que ventre,
de que vodka...


Nimbus

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Adiamento....



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada: hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Alvaro de Campos

Bom é que não esqueçais



Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada
Entregai-vos ao travo doce das delicias
Que filhas são dos seus tormentos
Porém, não busqueis poder no amor
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre


Fernando Pessoa

O poeta pede a seu amor que lhe escreva



Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Garcia Lorca