sexta-feira, 30 de abril de 2010

eras novo ainda



mal sabia reconhecer os teus própios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles
esta cama de minerais acesos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme
quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado...me despeço

Al Berto

quinta-feira, 29 de abril de 2010


o meu abraço
abraço o meu sonho
e nele me enrosco até que das lagrimas
só tenha ficado o sal, o sabor do fim.
abraço o meu sonho
embalo-me a mim,
até que o sono me venha apaziguar,
e sonho...
Sonho que o meu sonho persiste
enquanto for capaz de sonhar.
e o meu abraço, aquece-me
conforta-me, e assim...
abraçada comigo mesma,
estou pronta para acreditar no amanhã.
aperto no meu abraço
os meus amores, aos meus amigos
todos os que cabem no meu sonho,
e sinto um calor que vem de mansinho iluminar a escuridão.
e já não estou só,
abraço-me, embalo-me e adormeço.

O corpo não espera



O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Sena

Conheço o Sal




Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

Jorge de Sena

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Quem morre?




Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente
quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o negro sobre o branco
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos,
corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente
quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente,
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte
ou da chuva incessante.
Morre lentamente,
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.

Martha Medeiros

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Eremitério




mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo
os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado
encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior dessa ânfora alucinada
desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem
o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão
assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração

Al Berto

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Retrato




Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

Cecília Meireles

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Orvalho



…não quero apenas ser sonho…
Quero-te tocar
E sentir
Teu além
No suor
Longínquo do orvalho……

Nimbus

A boca





A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

que pode uma boca
esperar
senão outra boca?

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

Eugénio de Andrade

Se eu pudesse trincar a terra toda




Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se,
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Crespúsculo




É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

David Mourão Ferreira

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Que coisa distante




Que coisa distante
Está perto de mim?
Que brisa fragrante
Me vem neste instante
De ignoto jardim?

Se alguém mo dissesse,
Não quisera crer.
Mas sinto-o, e é esse
O ar bom que me tece
Visões sem as ver.

Não sei se é dormindo
Ou alheado que estou:
Sei que estou sentindo
A boca sorrindo
Aos sonhos que sou.

Fernando Pessoa

Sou um evadido




Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.


Fernando Pessoa

domingo, 18 de abril de 2010

Para a dedicação de um homem




Terrível é o homem em quem o senhor
desmaiou o olhar furtivo das searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra para esse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia

Reinaldo Ferreira

O amor antigo




O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 17 de abril de 2010

Memória




Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

Noite de mendigo




Fui seqüestrada nas entranhas
desta noite
por uma espécie de Senhor
da madrugada
Era meu corpo a implorar
por um abrigo
tal qual imensa ilha
desgarrada

Ele insistia em relembrar mistérios
entumecia agredia
(desterrava)
E evocava um outro tipo
de tremor
Algo que fosse o avesso
(uma morada)

Amanhecia
e as plantas já secavam
daquelas gotas tão iguais às
do meu corpo
E a viagem (ante o sol)
se transformava
em mais algum delírio que
desponta
de uma louca (e tão mendiga)
madrugada

Eliana Mora

Contigo aprendi coisas tão simples...




Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente

Ruy Belo
Tragicocomedia

Pintaram sorrisos lancinantes
com cores cruas desesperantes
para distrair os expectantes.

Olhem bem, vejam só!...
o mortal que mete dó,
a saltar como um animal ferido
do escárnio acometido
a cair com a cara no pó.

Batam palmas, nobres gentes
feras de sonhos traídos,
batam palmas,
mostrem os dentes, como hienas de flancos contraídos
que fogem do espectáculo decorrido
e do medo de se sentirem só,
como o palhaço caído,
que chora, e ri..., e mete dó.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Quero voar




Quero voar
-mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
-tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.)

José Gomes Ferreira

À luz do Sol


À luz do Sol


Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros tem medo mas tu não.


Porque os outros são os tumulos caiados

onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner

Se tudo o que há .........

Se tudo o que há é mentira....

Se tudo que há é mentira
É mentira tudo o que há
De nada nada se tira
De nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É por a vida com jeito.
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer
Que o resto ortigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.

Fernando Pessoa

" Não conheço nacionalidades nem fronteiras, meu compromisso é com a vida "
Antony Quinn

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Deixei a luz a um lado




Deixei a luz a um lado e numa beira
da cama em desalinho me sentei,
sombrio, mudo, os olhos imóveis
cravados na parade.
Que tempo estive assim? Não sei; ao deixar-me
a horrível embriaguez da dor
já expirava a luz, e na varanda
ria o sol.

Não sei tão-pouco em tão terríveis horas
em que pensava ou que passou por mim;
recordo só que chorei e blasfemei
e que naquela noite envelheci.

Gustavo Adolfo Bécquer

Quando estás vestidas...




Quando estás vestidas,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite

Manuel Bandeira

Esperança


Tantas formas revestes, e nehuma
Me satifaz!
Vens ás vezes no amor, e quase te acredito.

Mas todo o Amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco.
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho erético e sagrado.



Laços de Poesia: Esperança - Miguel Torga

Súplica...




Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Esta manhã encontrei o teu nome..




Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 13 de abril de 2010

Eu não voltarei...





Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.
Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.

Juan Ramón Jiménez

Sê paciente; espera




Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Se as minhas mãos pudessem desfolhar





Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

Garcia Lorca

COMIGO


(Diálogo com a minha alma)

Pobre alma desiludida,
teu mal é não esquecer
que tudo falha na vida...

Mas ouve, alma: p'ra viver
e ser feliz é preciso
fitar a mentira e crer,

como alguém que sem juízo
olha p'ra terra e a não vê
convertida em paraíso...

Um coração que não crê
na mentira cegamente,
coração feliz não é.

Se se desfaz de repente,
como fumo uma ilusão
que nos encanta... e nos mente;

E, se estendêssemos em vão
o braço com ansiedade,
para, a acolhermos na mão:

é que vemos na verdade,
que, destruindo a mentira,
se mata a felicidade,

é que somente existiria
no desejo - essa ventura,
...e a verdade a destruíra.

Quem a verdade procura.
busca a sua perdição,
busca a sua desventura.

Só se vive na ilusão:
a verdade é venenosa
envenena o coração.

A alma humana, desejosa
de verdade, sem prever
quanto a verdade é danosa,

teve febre de viver:
julgou a verdade boa
como o ar para viver,

- E a verdade envenenou-a...

Manuel Laranjeira
Fabula Antiga

No principio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada
Com pupilas de Lynce em olhos de Morcego.

Mas um dia, brincando, a Demencia, irritada,
Num impeto de furia os seus olhos vazou;
Foi a Demencia logo ás feras condenada,

Mas Jupiter, sorrindo, a pena comutou.
A Demencia ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,

Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisiveis laços,
Quando o Amor empreende a mais simples jornada
Vai a Demencia adiante a conduzir-lhe os passos.


António Feijó

As sem razões do amor




Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Do teu cheiro




O gosto da tua pele
sal impregnado em meus lábios
que me mata de sede
à beira da fonte dos teus prazeres.

O teu gosto na minha boca
mel que sacia meus desejos
na hora derradeira
do medo de te perder
em meio aos lençóis.

O teu cheiro impregnado
no meu corpo
perfume raro que nem a chuva
leva de mim...


Ademir Antônio Bacca

O uivo...


...latido incessante em minha mente,
prolongado e crescente,
selvagem secreção em minha boca,
timbre triste chamando por ti.......
Nimbus

Tentativas para um Regresso à Terra





O sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falamos rios deste regresso e pelas margens ressoam
passos
os poços onde nos debruçamos aproximam-se
perigosamente
da ausência e da sede procuramos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco
a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível dentro dos fragmentados corpos
e um dia......quem sabe?
chegaremos


Al Berto

terça-feira, 6 de abril de 2010

Adeus....




Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

As crianças...


Elas crecem em segredo, as crianças.
Escondem-se no mais oculto da casa para serem gato bravio, bétula branca.
Chega ao dia em que estas descuidado a olhar o rebanho que regressa
com a poeira da tarde, e uma delas, a mais bonita, aproxima-se em bicos de pés,
diz-te ao ouvido que te ama, que te espera sobre o feno....
A tremer vais buscar a caçadeira, e passas o resto da tarde a disparar
sobre as gralhas, inumeráveis, áquela hora....
Eugénio de Andrade