quinta-feira, 24 de junho de 2010

Nasci-te



No meu ventre de mulher cresceu teu feto
e foi a minha boca que te deu palavras
e silêncios para tu gritares
Dos meus braços multipliquei teus braços
e dei distâncias para tu voares
Dei-te tempos-de-nada
medidos de coragem
E foste. E és.


Manuela Amaral

1 comentário:

Anónimo disse...

Morri

Sentei-me justamente nas bermas da vida
E no estranho ofício da procura da felicidade, enrolei as mãos de um veludo áspero com uma ternura ríspida

Levantei-me depois, menos viva, num espasmo, num sorvo estremecido por uma noite sem movimentos
Vidrada por uma sinfonia a devorar-me por dentro

Enquanto caminhei para trás, nenhuma palavra me sobreviveu hoje

E nesse dia houve mil mãos que me seguraram de cabeça para a frente e no túmulo continuei a ver o teu rosto a sorrir no meu
Com sonhos desfeitos e as imagens a fecharem-se numa estrutura total, sintética e de um autismo tão imenso quanto o mar

Agora, tenho a liberdade de não ser eu

Morri na noite ondulada num oceano de solidão vazio. Com páginas em branco

Não sei como dizer que há em mim uma morte desfeita neste esquecimento perdido

Não sei como dizer que eram apenas sonhos

Que esta morte de que falo eram os meus braços abertos, e que, eu era aquela que cantava nas pálpebras abertas dos teus ombros
E não sei, não sei porque esta história não tem história

Saudade por sentir debaixo dos sonhos que sonhavam sozinhos. Sozinhos nas memórias já sem território

Senti-me uma música humana, feita de veias e dores mesquinhas. E vazios. E lugares parados e extasiados numa espécie de alegria fingida

Chorei baixinho, juntando as mãos sombrias enquanto lentamente as imagens me surgiam queimadas pelo ar subitamente ardido. Como o caminho que levo – tão surdo, tão mudo

Eu apenas. Minúscula na fuligem dos estrondos e das faíscas numa idade sem mistério e sem memória
E sobre um futuro vertiginoso, arrancado à pressa do coração, digo: morrem-me os dias em mim

Antes de sucumbir corri pelas ruas do medo, sem saber por que ruela seguir, até encontrar o fim de nós

Agora que morri, o que fica?

Gostava de te ter dito que quando eu acendo as pálpebras, por dentro cai o som do céu na boca e entorno-me de uma ternura que respira depois.Dividem-se os gestos, esquece-se a cumplicidade, e o que fica depois?

A luz. As pálpebras. Um sorriso

O caminho mais curto levou mais tempo. Tive de voltar para trás.
E juro que quando o comecei a trilhar achei que os meus pés tinham sola de eternidade e que os meus olhos tinham uma cegueira reconstruída hoje na resina das minhas memórias

Morri às seis da manhã e sete minutos. E era a essa hora que antes me seguravas tantas vezes e me olhavas vertiginosamente pelas pálpebras quase transparentes da manhã. Tantas vezes te aguardei que não sei se algum dia não te atrasarias

Crucifiquei-me nos espinhos que não quis ver antes, enquanto olhava para as imagens bocejadas no silêncio dos teus gestos

Morri. Às seis e pouco da manhã. E arrependi-me de não ter respirado a intensa maresia do teu ser só ao de leve. As minhas asas tiritam de frio. E o frio corrói-me a carne, e os ossos. Se assim não fosse, um dia iria aí em baixo dizer-te tudo, recusando tudo

Ardi a vermelho nos braços estendidos pelo chão. Cansada. Porque ele esperava quase nada. Porque dele esperava quase nada

Bastaram dois passos para o passo mortal: não saber onde esteve o princípio e a terrível verdade que é tudo ter esquecido por simplesmente julgar haver um começo

Comigo não trouxe nada. Nenhuma palavra nas mãos, nenhuma imagem de ti

Morri-me para que morresses em mim

Morri

E fiquei sem ti

E continuei sem mim

(M)