segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Quando eu morrer



Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti. 
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis 
que alagámos de beijos quando eram outras horas 
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse 
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa 
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia 
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu 
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa 

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu, 
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado 
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas 
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores 
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara 
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre 
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes 
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me 

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem 
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me 
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos 
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois 
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar 
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando 
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas 
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol, 
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.


Maria do Rosário Pedreira


1 comentário:

Anónimo disse...

Nunca te aconteceu pensares que a nossa história poderia ficar para uma outra vida? A mim já. E depois lembro-me que acredito, única e exclusivamente, na morte para além da vida...

Nunca uma sombra de morte fez a sua passagem breve pelos teus olhos escondidos na noite, despertando as questões ainda latentes, desejosas da vida que as palavras, os pensamentos irrequietos e os sentires fulgurantes tornam possíveis nas terras densas da consciência? A mim já.

Nunca te surgiu o despertar suado em medo? A mim já. As fantasias envolventes de demónios e anjos vermelhos já me arrancaram o corpo do acolhimento da cama morna...

Nunca te aconteceu sentir que não há limites onde se situar um principio e um fim, uma questão e a correspondente resposta? A mim já.

Nunca te aconteceu a invasão dos sonhos com línguas, sexos e toques indivisíveis entre corpos e diferentes substâncias, num concurso concedido somente à imaginação? A mim já.

Nunca desejaste uma multiplicidade abençoada numa infinidade de falecimentos e de renascimentos? Eu já desejei.

Nunca te aconteceu teres a mente atordoada, as palavras entrelaçadas e os sentimentos sem sentido, envoltos numa poça de lama onde buscas um cheiro inodoro no meio do cheiro fétido? A mim já.

Nunca te aconteceu perderes os sentidos e desmaiares exactamente no mesmo local onde outrora começaste a erguer-te? A mim já.

Muitas vezes anseio mergulhar-me numa água que lave, mas não sei virar-me do avesso e temo que os pecados que me servem de escamas sejam purificados...

Se mergulhasse, esperaria a materialização espontânea da minha essência perdida nos crepúsculos melancólicos dos dias que não acabam. Que teimam em não acabar.

Existe um límpido perfil de silêncios em novelos que vão chovendo nas noites...

E sempre o mesmo ciclo vicioso - o papel na tua mão, a caneta na minha...

Sou preenchida apenas pelo amor da procura incessante. A procura do que nunca foste, mas do que durante muito tempo foste para mim.

Será sempre, sem passado nem futuro, que o mundo existirá sem sair de mim própria...

Define-te tanto o que és como o que não és.

No nosso poiso inoportuno degladiaram-se a vontade e a falsa razão. E as culpas, as vergonhas, as inseguranças e os meus medos são enterrados em campas contíguas à minha.

A chuva de som incolor escreve na minha pele árida, um cinema de sentimentos, um pouco de tinta que borra a margem da memória.
Mordo gradualmente a água invisível do teu corpo ao longo da viagem de silêncio e as minhas mãos áridas morrem em desejo pálido...

O teu caminho calmo passa entre os segundos, e encolhe-se por entre os tempos de inércia.
E sorrio, num sorriso quase cínico, por saber a morte do teu perfume que agora permanece a leste de um sonho envolto em pesadelos...

Entro de forma devassa nos teus olhos onde dormem os pilares do arco íris...

E vejo que há muita humidade nas minhas insónias. E as horas vão morrendo na cadência dos ponteiros, na inquietude da luz que ferve sobre a minha pele e sobre a tua mudez.

Nunca te aconteceu seres atropelada pelo peso das tuas falsas relativizações?

A mim já, e congratulo-me por ter sido atropelada pelo teu viver, e ter acordado dentro de uma página branca...

(...)